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Entre embate e sutileza: A estratégia da China na guerra comercial
Livio Ribeiro (livio.ribeiro@brcg.com.br)
30/04/2025
Bottom line: A resiliência chinesa surpreenderá na guerra comercial, trazendo novas oportunidades e desafios para o mundo. O país tentará expandir a sua atuação econômica e geopolítica, candidatando-se, cada vez mais, como uma liderança alternativa aos Estados Unidos. Será um momento complicado, especialmente para países na intersecção das zonas de influência das duas grandes potências. Trata-se exatamente do caso do Brasil.
Em teoria dos jogos, um dos modelos básicos de interação estratégia entre dois agentes é o Jogo do Covarde (Chicken Race). Nele, dois atores aceleram seus carros, um em direção ao outro, com o objetivo de forçar o desvio do oponente (o covarde). Se ninguém ceder, a colisão levará à ruína de ambos[1].
Em muitos aspectos, o que tem ocorrido entre Estados Unidos e China pode ser visto como um Jogo do Covarde: cada país aumenta a sua aposta e torna a posição do oponente mais desconfortável, forçando o desvio. Quando as duas grandes potências iniciarem, de fato, negociações comerciais bilaterais, o primeiro a capitular terá uma posição negocial mais frágil.
Há um debate digno sobre os oponentes já estarem “em ruína”: tarifas chinesas de 125% sobre produtos americanos, tarifas americanas de 245% sobre produtos chineses e restrições múltiplas, não-tarifárias, aos fluxos financeiros, comerciais e logísticos sugerem que as ameaças mútuas já passaram do ponto. Mesmo com acomodações, o estrago está feito, com custos que serão observados por muito tempo.
Por ser os Estados Unidos a maior economia do mundo, emissora dos ativos de reserva e central para as vendas externas chinesas, o senso comum sugeria que possuíam certa vantagem estratégica. Assim, foi um choque, para muitos, que a China tenha elevado a sua voz e se posicionado contra o bullying tarifário americano.
A surpresa com a atuação chinesa deriva de um desconhecimento do atual estágio de desenvolvimento econômico e financeiro do gigante asiático. A China que ainda habita o imaginário popular (uma maquiladora, com mão de obra barata, espoliadora de patentes e totalmente voltada às exportações) já ficou há muito para trás, e sua capacidade de lidar com o choque externo em curso é muito maior do que as pessoas imaginam.
Acima de tudo, é importante reconhecer que a China já tem se preparado para um embate desde, pelo menos, o início do 4º trimestre de 2024 – ou seja, antes das eleições americanas (novembro de 2024) e da posse de Trump (janeiro de 2025). A China entende que a contraposição aos Estados Unidos é uma questão secular; e, com atraso, o Ocidente começa a perceber isso. Um sem-número de medidas monetárias, creditícias, fiscais e parafiscais já foi posta em marcha, dando suporte à economia e, de alguma forma, preparando o terreno para tempos mais difíceis.
Juros foram reduzidos, aumentou-se a provisão de liquidez na economia, bancos foram capitalizados, quotas de emissão de títulos públicos foram ampliadas, fundos públicos de amparo setorial (especialmente ao mercado imobiliário) foram criados e políticas específicas de promoção do consumo foram implementadas. O governo não chegou ao ponto de fazer mudanças estruturais que aumentassem a confiança das famílias na sua renda, presente e futura, de forma a maximizar o consumo interno – o que, hoje, é o grande calcanhar de Aquiles chinês. Mas é inegável que muitos estímulos foram postos na mesa em 2024, com efeitos a serem percebidos ao longo de 2025.
O Estado chinês não virá ao resgate de sua economia; ele já veio. Como tais medidas são em geral desconhecidas, perde-se a capacidade de avaliar a real posição chinesa para entrar em negociações com os americanos. Como boa estrategista, a China atuou com sutileza, “torcendo pelo melhor, mas se preparando para o pior”.
Outro capítulo importante desta preparação ocorreu em março de 2025, já depois das primeiras rodadas de elevação tarifária, mas antes das tarifas recíprocas (primeira quinzena de abril). Em sessão plenária do Congresso Nacional do Povo, foram divulgadas as metas econômicas para 2025. A meta de crescimento do PIB foi mantida em 5,0%, e, frente a um cenário desafiador, houve clara indicação de mais impulsos governamentais nas searas monetária, fiscal e creditícia. Estimular o consumo interno, estabilizar o mercado imobiliário e navegar as incertezas externas são os vetores centrais da estratégia oficial para 2025, complementando as políticas postas em marcha durante 2024.
Alguns detalhes das metas merecem comentários específicos, reforçando a atuação estratégica chinesa. Acima de tudo, entendemos que a manutenção da meta de crescimento do PIB foi um sinal claro de que haverá bastante suporte à economia, ajustado em função dos desafios conjunturais. Se a China não atingir a meta, não será por falta de iniciativa do Estado.
Não houve grande novidade, nas metas anuais, do lado monetário: os juros serão baixos, com ampla liquidez. Mas as iniciativas fiscais, parafiscais e creditícias se tornaram mais claras, e serão muito relevantes. Do lado fiscal (orçamentário), ampliou-se a meta de déficit fiscal em 1,0p.p, atingindo 4,0% do PIB; tal variação foi a maior do pós-pandemia. Ampliando o conceito de déficit para abarcar, por exemplo, fundos públicos, estimamos um histórico déficit de 10% do PIB em 2025, pouco mais de 2,0p.p. acima do que calculamos ter ocorrido no ano passado.
Do lado parafiscal e creditício, houve generalizado aumento das quotas de emissão de títulos públicos. No caso dos títulos ultralongos, os proventos serão utilizados não somente para questões “estruturais”, mas também, e crescentemente, para financiar políticas setoriais (industriais), de curto prazo. Já no caso dos títulos de propósito especial (SPB´s), a ampliação das quotas reforçará a posição de caixa dos entes subnacionais, centrais para as inversões públicas tão necessárias ao crescimento no curto prazo.
Por fim, muita atenção foi dada à promoção do consumo doméstico como prioridade do governo nas metas anuais. A posição oficial ganhou novos capítulos em meados de março, com a divulgação do “Plano Especial para a Dinamização do Consumo”. Ao contrário da maioria, não entendemos o plano como um divisor de águas para o consumo doméstico, sendo concebido sem clareza de prazos, metas e orçamentos. É inegável, no entanto, que a atenção ao tema aumentou, e que este será mais um vetor de apoio à economia em 2025.
Em conclusão, o arsenal chinês está colocado, com um escopo mínimo e já relevante de medidas. A resiliência chinesa surpreenderá, trazendo novas oportunidades e desafios para o mundo. O país tentará expandir a sua atuação econômica e geopolítica, candidatando-se, cada vez mais, como uma liderança alternativa aos Estados Unidos. Será um momento complicado, especialmente para países na intersecção das zonas de influência das duas grandes potências. Trata-se exatamente do caso do Brasil.
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Este relatório foi produzido pela BRCG utilizando dados públicos compilados até 30 de abril de 2025 e possui caráter meramente informativo. O relatório é destinado a clientes e investidores institucionais, não podendo a BRCG e/ou os seus analistas serem responsabilizados por quaisquer perdas, diretas ou indiretas, derivadas de sua utilização. Este relatório não pode ser reproduzido, distribuído ou publicado por qualquer pessoa ou instituição, para quaisquer fins, sem a estrita autorização da BRCG.
[1] Este artigo foi originalmente publicado no Caderno Especial 25 Anos do Jornal Valor Econômico, no dia 30 de abril de 2025 (página F31). O original pode ser lido em https://valor.globo.com/25-anos/noticia/2025/04/30/entre-embate-e-sutileza-a-china-na-guerra-comercial.ghtml