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Política fiscal: Propostas rudimentares
Matheus Ribeiro (matheus.ribeiro@brcg.com.br)
Livio Ribeiro (livio.ribeiro@brcg.com.br)
28/11/2024
Bottom line: As medidas de revisão de despesas propostas pelo governo foram rudimentares em conteúdo, forma e comunicação. Não há ajuste estrutural e são grandes os riscos de desidratação dos efeitos esperados até o fim do governo Lula III, em meio à tramitação congressual. O anúncio conjunto da correção na tabela do Imposto de Renda tirou o foco das medidas de ajuste e aumentou a percepção de desorganização no debate macroeconômico brasileiro.
Parafraseando a ex-presidente Dilma Rousseff[1], entendemos que as medidas propostas pelo governo foram rudimentares – em conteúdo, em forma e na comunicação. O anúncio do pacote fiscal, recorrentemente postergado, trouxe um compêndio de medidas que não serão suficientes para promover a sustentabilidade das contas públicas brasileiras. Há evidente dificuldade de embasar as estimativas divulgadas, com ganhos que se diluem por um longo período e que são relativamente contidos no curto prazo. Falhas na comunicação dificultaram a compreensão de partes relevantes do ajuste, e, mais importante, ao trazer a discussão da reforma do imposto de renda para este momento, o governo criou enorme ruído. O que deveria ser um momento de reforço do arcabouço fiscal acabou se transformando em um evento que aumenta a sensação de desorganização da economia.
As medidas propostas (tabela 1) são cercadas de incertezas e empurram o ajuste para o futuro. Até 2026, espera-se uma redução de despesas de R$ 71,9bi, com mais impacto daqui a dois anos (R$ 41,3bi) do que no ano que vem (R$ 30,6bi). Conforme o tempo passa, o ganho esperado aumenta, totalizando R$ 327bi até 2030. As simulações não tiveram seus detalhes e premissas divulgados, sendo particularmente difícil avaliar a sua acuidade. Mais ainda, as matérias serão divididas em duas tramitações, um Projeto de Emenda Constitucional (PEC) e um Projeto de Lei Complementar (PLP), com apreciação e votação nas duas casas legislativas. Mudanças de escopo durante a tramitação são prováveis e usuais, modificando tanto os montantes estimados como o prazo decorrido para os ajustes.
Tabela 1: Medidas de revisão de despesas
Fonte: Ministério da Fazenda
No caso da PEC, espera-se uma economia moderada no próximo biênio, totalizando pouco menos R$ 25,0bi. A maior parte dos ganhos virá da extensão da Desvinculação do Orçamento da União (DRU)[2], com vencimento ao final de 2024 e sendo prorrogada até 2034, e das mudanças no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB)[3], incorporando ações orçamentárias específicas ligadas à educação básica em tempo integral. Os ganhos com o abono salarial[4], reduzindo o pagamento de 2 salários-mínimos a 1,5 salário-mínimo ao longo do tempo, serão de longa maturação e terão efeitos muito pequenos no curto prazo. Ganhos adicionais viriam de uma redução de 10% subsídios e subvenções específicos, além de novas regras para a correção do Fundo Constitucional do Distrito Federal (FCDF)[5].
No caso do PLP, a economia sugerida até 2026 é um pouco maior, totalizando R$ 30,9bi. A maior parte da economia viria das revisões propostas no Benefício de Prestação Continuada (BPC)[6] e no Bolsa Família. Entretanto, o teor das mudanças nesses benefícios é majoritariamente de focalização, imposição de biometria, além de mudanças incrementais em critérios de renda (no caso do BPC) e aumento do monitoramento sobre famílias unipessoais (no caso do Bolsa Família). Essas iniciativas são dignas e deveriam fazer parte do rito usual de monitoramento dos programas governamentais. No entanto, se assemelham bastante às estratégias de “pente-fino” que têm sido recorrentemente propostas pelo Executivo, com resultados, em geral, menores do que as sinalizações iniciais.
Há enorme carência de insumos para avaliar a potência dessas medidas. Os critérios para a projeção de impacto dessas mudanças “administrativas” são especialmente incertos e, até o momento, pouco detalhados. Sua importância como medida para o fortalecimento fiscal parece ser, portanto, um tanto exagerada – ou, ao menos, de difícil avaliação. Para além do BPC e do Bolsa-Família, também faltam informações sobre os critérios utilizados para a projeção de outras economias de despesas. Isso se aplica tanto no caso do ajuste nos gastos das Forças Armadas, que promove alterações na contribuição de militares e na idade mínima para reserva remunerada, além de outras medidas administrativas, como no caso de alterações na lei Aldir Blanc, reduzindo recursos destinado à cultura empoçados nos municípios.
Há, também, ajustes propostos no funcionamento da máquina pública. O pacote propõe a redução da criação de cargos públicos em 2025, além de modificar as emendas parlamentares, seguindo o já disposto no Projeto de Lei Complementar (PLP) 175/24. O crescimento das emendas impositivas será limitado à variação das despesas presente no arcabouço fiscal. Além disso, eventuais bloqueios em emendas serão proporcionais aos bloqueios nas despesas discricionárias totais (limitado a 15% das emendas). Por fim, 50% das emendas de comissão devem ser direcionadas aos gastos com saúde no SUS.
O pacote, se aprovado como proposto, funcionará como uma pinguela até o fim do governo Lula III. Mesmo com as ressalvas das projeções de economia de despesas com benefícios, o conjunto de medidas apresentado deve ser suficiente para tornar o cumprimento das metas fiscais (em seu piso) em 2025 e 2026 mais simples, além de reduzir a pressão sobre o orçamento discricionário, ao menos até o fim do atual governo. Deve-se estar atento à possibilidade de desidratação dos textos ao longo da tramitação no Congresso, reduzindo o seu impacto sobre o orçamento.
A questão estrutural não foi adequadamente tratada. Como temos ressaltado em comunicações recentes[7], as atuais regras para o crescimento da despesa obrigatória vão comprimir a despesa livre no orçamento a níveis operacionalmente inviáveis até o fim da década. Os ajustes propostos pelo governo praticamente não afetam essa perspectiva. Para enfrentar a questão estrutural, os principais temas a serem abordados seriam a correção de benefícios previdenciários e assistenciais pelo salário-mínimo e a vinculação do gasto mínimo com Saúde e Educação à dinâmica da arrecadação, questões que voltaram a vigorar no governo Lula III.
A questão do reajuste do salário-mínimo merece comentários específicos. Hoje, o reajuste real do salário-mínimo em t combina a inflação do ano anterior (t-1) com o crescimento do PIB defasado em dois anos (t-2). Como as projeções de crescimento econômico no longo prazo não costumam superar 2,5%, mesmo em fontes oficiais[8], a imposição do limite máximo de crescimento real das despesas do arcabouço fiscal, de 2,5%a.a., tende a ter pouco efeito restritivo a médio prazo. Importante notar que o limite inferior do crescimento real das despesas, de 0,6%a.a., também passaria a ser válido. Logo, em evento de recessão em t, a nova regra garantia um reajuste real dos salários de 0,6% em t+2; acima da institucionalidade atual.
O pacote é mudo no tema de vinculação de despesas às receitas. A vinculação dos gastos com Saúde e Educação ao comportamento das receitas não foi alterada no pacote. Essa necessária mudança estrutural deverá ser deixada para o próximo governo, sendo negociada em condições mais desafiadoras do que as atuais.
O anúncio conjunto da mudança na tabela do Imposto de Renda foi um enorme tiro no pé. Em termos de comunicação e construção da narrativa de ajuste, o timing da divulgação de uma renúncia de receita para 2026 foi extremamente inoportuno. O governo defende que a medida será fiscalmente neutra, com majoração tributária do imposto de renda sobre os mais ricos. Não se sabe ao certo quais as alíquotas serão necessárias, e sobre qual base tributável elas incidirão (por exemplo, rendas totais, rendas do trabalho ou distribuição de lucros e dividendos). O debate sobre o Imposto de Renda será mais um tema a poluir a agenda econômica e política em 2025.
Ainda que a medida possa ser fiscalmente neutra, ela não será macroeconomicamente neutra. Ao liberar renda disponível para a classe média, haverá um provável incremento da demanda por bens e serviços, complicando ainda mais a tarefa do controle inflacionário no ano das eleições presidenciais de 2026. O ajuste fiscal frustra o mercado e se desenha um novo impulso fiscal para o ano eleitoral; não é por acaso que, imediatamente após a divulgação das medidas propostas pelo governo, os preços de mercado (especialmente a taxa de juros e a taxa de câmbio) tenham reagido tão negativamente
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Este relatório foi produzido pela BRCG utilizando dados públicos compilados até 28 de novembro de 2024 e possui caráter meramente informativo. O relatório é destinado a clientes e investidores institucionais, não podendo a BRCG e/ou os seus analistas serem responsabilizados por quaisquer perdas, diretas ou indiretas, derivadas de sua utilização. Este relatório não pode ser reproduzido, distribuído ou publicado por qualquer pessoa ou instituição, para quaisquer fins, sem a estrita autorização da BRCG.
[1] A então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, definiu o plano de ajuste fiscal de longo prazo proposto pelo Ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, como “rudimentar”. Para relembrar essa célebre entrevista, feita em 2005, acesse https://www.estadao.com.br/economia/a-economia-no-novo-governo/plano-de-ajuste-de-longo-prazo-e-rudimentar-e-nao-esta-em-debate/?srsltid=AfmBOoqDzmU971uiA7WfBnBDo_1M9wG4JlkP79I8gEX1vbhPETiM4vUZ
[2] Como define o Senado Federal, a Desvinculação de Receitas da União (DRU) é um mecanismo que permite ao governo federal usar livremente 20% de todos os tributos federais vinculados por lei a fundos ou despesas.
[3] É um instrumento permanente de financiamento da educação pública, composto por recursos de impostos e transferências da União e de subnacionais. Ver: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/fundeb
[4] Nas regras atuais, é um benefício anual para trabalhadores formais que recebem até 2 salários-mínimos.
[5] Seguindo a definição do Congresso Nacional, são os recursos recebidos pelo Distrito Federal para organizar e manter a polícia civil, a polícia penal, a polícia militar e o corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, bem como os recursos recebidos a título de assistência financeira para a execução de serviços públicos de saúde e educação.
[6] Seguindo definição do Ministério de Desenvolvimento Social, o Benefício de Prestação Continuada corresponde à garantia de um salário-mínimo, devido à pessoa portadora de deficiência, independente da idade, e ao idoso com 67 anos ou mais, que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família.
[7] Ver: https://brcg.com.br/encontro-marcado-ate-o-fim-da-decada-pressao-nas-despesas-e-a-implosao-das-instituicoes-fiscais/
[8] O Relatório de Projeções Fiscais (Tesouro Nacional) mais recente conta com crescimento real de longo prazo de 2,5% ao ano.