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PEC da Transição: A conta está posta, e agora?

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PEC da Transição: A conta está posta, e agora?

Livio Ribeiro (livio.ribeiro@brcg.com.br)

Matheus Ribeiro (brcg_fiscal@brcg.com.br)

24/11/2022

Bottom line: A PEC da Transição tem o mérito de explicitar, de forma clara, o desejo por aumento de gastos na próxima administração, balizando as discussões em torno do tema. Há, no entanto, detalhes preocupantes e uma total omissão sobre a construção de um novo arcabouço fiscal, crível. Falta à transição harmonizar o aumento permanente dos gastos com a responsabilidade fiscal, combatendo as visões, equivocadas, de que existe uma contraposição entre o combate à desigualdade social e a gestão responsável do erário.

PEC da Transição. Foi bem preciso quem nomeou a proposta em discussão para viabilizar mais investimento público e gastos com o Bolsa Família a partir de 2023. Marca o primeiro passo de uma transição política e institucional, com revisão das prioridades alocativas do setor público e uma mudança no arcabouço fiscal de médio prazo.

A minuta inicial da PEC, apresentada em meados de novembro, teve como único ponto positivo deixar transparentes as mudanças orçamentárias que se deseja realizar, sem subterfúgios e sem fingir que a âncora fiscal anterior permaneceria (e, com tantas mudanças e exceções feitas nos últimos anos, de fato é contestável se a âncora, de facto, ainda existe). Não há, no entanto, olhos para o futuro: a ausência de debate sobre um novo arcabouço causa enorme incômodo. E, além disso, há detalhes no texto apresentado que inspiram preocupações.

Em descrição célere, a minuta apresentada, sujeita a (quase certas) alterações no trâmite legislativo, reforça as dotações orçamentárias voltadas aos investimentos e aos gastos sociais. Abre, também, espaço para aumento de despesas de custeio e até de obrigatórias, ao propor a retirada completa, e permanente, das despesas com o Bolsa Família do Teto de Gastos.

Do lado dos investimentos, receitas que superem o previsto na lei orçamentária podem ser alocadas a novos investimentos, não sujeitos ao Teto dos Gastos ou à meta de primário. O valor máximo a ser utilizado seria de R$ 23bi/ano.

Do lado social, seria viabilizada a manutenção do Bolsa Família em R$ 600,00/mês, além da concessão de benefício extra de R$ 150,00/mês às famílias com crianças menores de 6 anos. Honrar-se-ia, assim, as promessas de campanha (por sinal, de ambos os candidatos), mesmo sem previsão dessas despesas no projeto de lei orçamentária (PLOA) já aprovado para 2023, a um custo estimado de R$ 70bi no ano que vem.

Mais importante, a minuta da PEC propõe a retirada deste gasto dos limites impostos pela EC 95, abrindo, assim, espaço para execução adicional de despesas dentro do teto previsto para o orçamento de 2023[1]. Excluindo-se os gastos com Bolsa Família das regras fiscais, seria possível ampliar as despesas em R$ 105bi, com alocação a ser definida no orçamento anual – seria possível, em princípio, ampliar despesas discricionárias (especialmente investimentos), alocar mais recursos para projetos específicos ou conceder reajustes aos servidores, honrando, assim, outras promessas de campanha.

Note-se que, ao contrário do que sugere a discussão original, com amplo uso da palavra waiver, a PEC não trata propriamente de uma licença temporária para gastos, mas sim de um aumento permanente nas despesas. Somente para 2023, a adição das propostas acima elencada teria um impacto de aproximadamente R$ 200bi nas despesas primárias (algo como 2,1% do PIB, ou, em outra métrica ainda mais interessante, 60% do gasto com pessoal do Governo Federal durante os últimos 12 meses).

Ao menos, a PEC explicita o desejo por aumento dos gastos – do governo e, em alguma medida, da própria sociedade. As dificuldades de cumprir o Teto dos Gastos nos últimos anos já sugeriam isso, mesmo sob orçamento discricionário cada vez mais enxuto[2]. Desde 2019, o governo tem utilizado subterfúgios – alguns justificáveis, outros nem tanto – para “cumprir” o Teto de Gastos.

Sem ser exaustivo, e olhando somente para 2022, limitou-se o pagamento de precatórios, modificou-se a correção do teto para o IPCA acumulado em 12 meses de dezembro (e não em mais em junho) e se possibilitou um aumento de transferências de renda em período eleitoral, no contexto da “PEC das Bondades”. Somente este grupo de “desvios” contornou o Teto para viabilizar aumento de gastos de R$ 154bi em 2022. O esgotamento da âncora fiscal, como concebido na administração Temer, já era claro.

Não importava quem fosse eleito, onerosas promessas de campanha haviam sido feitas – e o debate passaria a ser, depois das eleições, de como (ou se) cumpri-las. Nesse contexto, é importante, do ponto de vista de transparência e previsibilidade, ter clareza do quanto se pretende elevar as despesas. A proposta do governo tem esse mérito, ao estabelecer um tamanho para a conta, ainda que este pareça, hoje, um limite superior, tendo em vista a dificuldade de obtenção de consenso para tramitação e as outras propostas para elevação dos gastos que foram apresentadas no Congresso.[3] .

Há, porém, questões na formulação atual do texto que podem ir na contramão da transparência e previsibilidade ressaltadas acima. Por exemplo, o texto prevê que, cumprindo-se ou não a meta de primário, as receitas “extraordinárias” (acima do previsto) podem ser revertidas para aumento de investimento. Qual o incentivo que isso traz para a condução do orçamento público? Faz sentido que um surpresa positiva seja imediatamente consumida (ao menos, em parte), sem consideração sobre a conveniência de aumento do superávit primário, e, assim, melhora da dinâmica da dívida pública?

A preocupação maior, contudo, é com o que a minuta não sinaliza: é necessário estabelecer uma nova âncora fiscal, crível, e o texto apresentado é totalmente omisso nesse ponto. Além disso, o aumento permanente previsto para as despesas não traz, de antemão, qualquer estratégia de compensação, do lado das receitas, para garantir a volta a uma trajetória de resultados primários que seja consistente com a sustentabilidade da dívida pública.

Simulações feitas pela IFI sugerem que os efeitos da proposta sobre a dinâmica fiscal podem ser relevantes, com o prolongamento do déficit primário até o fim da década[4]. Não é necessário dizer que, em cenário como esse, as simulações mostrarão uma dívida divergente. Das duas uma: ou teremos aumento de carga, ou outros fatores, ligados à aceleração do PIB nominal, serão capazes de promover convergência – neste caso, provavelmente muito mais via inflação (deflator do PIB) do que via forte expansão do crescimento na economia.

Até a eleição, o compasso de espera era total. As indefinições, muitas. No pós-eleição, o tamanho da conta foi posto na mesa: R$ 200 bi em despesas permanentes, ainda que este pareça ser um limite superior. A conta pode até ser menor, mas é alta.

As perguntas, agora, continuam muitas, ainda que mais específicas: A conta se manterá neste patamar após tramitação legislativa? Será paga “à vista”, com aumento de carga tributária ou compensação em outras despesas, ou será “paga a prazo”, com aumento plurianual do déficit primário e do endividamento? Tal cenário não afeta negativamente a possibilidade de flexibilização monetária pela Banco Central? E isso, por si, não afeta a dinâmica da dívida, além de nossa capacidade de registrar crescimento robusto e sustentado?

Em resumo, falta à transição demonstrar como harmonizar o aumento permanente dos gastos com a responsabilidade fiscal. E, acima de tudo, acabar com as visões, a nosso ver totalmente equivocadas, de que existe uma contraposição ente o combate à desigualdade social e a gestão responsável do erário.

 

DISCLAIMER

Este relatório foi produzido pela BRCG utilizando dados públicos compilados até 24 de novembro de 2022 e possui caráter meramente informativo. O relatório é destinado a clientes e investidores institucionais, não podendo a BRCG e/ou os seus analistas serem responsabilizados por quaisquer perdas, diretas ou indiretas, derivadas de sua utilização. Este relatório não pode ser reproduzido, distribuído ou publicado por qualquer pessoa ou instituição, para quaisquer fins, sem a estrita autorização da BRCG.

[1] Apenas a partir de 2024 aumentos dos gastos com o Auxílio Brasil estariam sujeitos a limitações, impostas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que exige compensação em caso de aumento de despesas. Mais informações disponíveis em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/analise/novos-aumentos-do-bolsa-familia-em-2024-terao-que-ter-compensacao-da-lrf-18112022

[2] Despesas discricionárias são as que não são obrigatórias. Como o nome diz, há discricionariedade para destinação desses gastos, e sob essa linha de despesa estão gastos com custeio e investimento. A execução discricionária veio se reduzindo nos últimos anos, com valores reais saindo de R$202bi em 2019 a R$152bi previstos para 2022.

[3] Como exemplos mais notáveis, estão (i) a proposta do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que aumentaria o espaço sob o teto, de forma permanente, em R$ 80 bi, direcionando despesas para transferências de renda, saúde, educação, ciência e cultura, além de manter o Teto dos Gastos como âncora fiscal de médio prazo; e (ii) a proposta do senador Alessandro Vieira (PSDB-SE), que autoriza R$ 70bi de despesas adicionais, fora da regras fiscais (Teto, meta primária e regra de ouro), em 2023, com a necessidade de se estabelecer uma nova regra fiscal, por lei complementar e em substituição ao Teto dos Gastos, até julho de 2023.

[4] Em simulação dos efeitos da PEC da Transição no RAF de novembro, a IFI aponta em seu cenário base que a proposta causaria déficit primário ao longo de todo horizonte de projeção (2023-2031).